Erros de Inteligência Artificial: Impactos Jurídicos e Riscos para Empresas no Brasil
- Benites Bettim Advogados
- 11 de jul.
- 5 min de leitura

O jurídico ainda não lidera o tema da inteligência artificial
A adoção de sistemas de inteligência artificial vem crescendo rapidamente nas empresas, mas o jurídico ainda não ocupa um lugar efetivo nas decisões que definem como essas ferramentas são incorporadas à operação. Em geral, a escolha por soluções automatizadas ocorre dentro de áreas técnicas, com pouca ou nenhuma análise sobre as implicações jurídicas do seu uso. Isso tem feito com que a discussão sobre responsabilidade só surja depois que uma falha já provocou impacto.
Essa ausência não se explica por desconhecimento do tema, mas por uma separação estrutural que ainda persiste entre a inovação tecnológica e a gestão jurídica do risco. Enquanto a TI se concentra na performance dos sistemas, o jurídico é chamado apenas quando há um incidente. Nesse intervalo, decisões importantes são tomadas sem qualquer baliza contratual, regulatória ou de responsabilização. E o que poderia ter sido resolvido por critérios de governança acaba se transformando em disputa judicial.
O que chama atenção é a normalidade com que esse distanciamento tem sido tratado. Empresas que operam com dados sensíveis ou processos automatizados de decisão continuam atuando sem um modelo interno que defina como a IA deve ser validada, supervisionada ou documentada. Mesmo estruturas jurídicas robustas ainda não estabeleceram um fluxo claro para avaliar riscos antes da contratação, monitorar a performance dos sistemas ou reagir a falhas com base em diretrizes institucionais.
Esse vazio tem custo. Quando o erro acontece, faltam elementos para reconstruir a cadeia de decisões que permitiu a falha, e o espaço de resposta jurídica se reduz. A responsabilidade, nesse contexto, não decorre apenas do evento final, mas da ausência de controle anterior. É essa estrutura, e não apenas o litígio, que precisa ser revista.
Falhas de IA são riscos jurídicos, não apenas técnicos
Falhas causadas por sistemas de inteligência artificial não podem mais ser tratadas como desvios operacionais isolados. Quando uma decisão automatizada gera impacto direto em direitos de terceiros, o que está em jogo é uma responsabilidade que ultrapassa o domínio da engenharia de software. O erro, nesse contexto, precisa ser analisado sob a ótica do risco jurídico da atividade, especialmente quando a empresa delega funções sensíveis a sistemas que operam com baixa transparência e autonomia elevada.
O regime jurídico aplicável a essas situações tende a afastar a discussão sobre culpa individual. A lógica que prevalece é a da responsabilidade objetiva, segundo a qual basta comprovar a existência do dano e o nexo com a atividade desenvolvida para que surja o dever de indenizar. Quando a empresa escolhe adotar uma solução automatizada, assume também o risco pelas falhas decorrentes dessa escolha, ainda que a decisão final tenha sido tomada por um sistema e não por um agente humano.
Esse entendimento tem se consolidado, inclusive, em decisões recentes que envolvem instituições financeiras, plataformas digitais e empresas de tecnologia. O ponto comum entre esses casos é a constatação de que a complexidade dos sistemas não pode servir de escudo para afastar a responsabilização. A ausência de intervenção humana direta não elimina a expectativa de controle, nem reduz o dever de diligência quanto à performance do sistema adotado.
Ao empregar inteligência artificial em processos que afetam terceiros, a empresa incorpora à sua operação alguns tipos específicos de risco: os riscos de erro não detectável a tempo, de discriminação algorítmica ou de execução automática sem verificação adequada. Esses riscos, uma vez concretizados, não serão atribuídos ao desenvolvedor da tecnologia, mas a quem decidiu utilizá-la sem implementar salvaguardas suficientes. É essa lógica que tem orientado a jurisprudência e que precisa ser compreendida de forma mais clara pelas áreas jurídicas que ainda tratam a IA como assunto técnico periférico.
A Justiça já está cobrando respostas sobre decisões automatizadas
O aumento de litígios envolvendo decisões tomadas por inteligência artificial já é um dado concreto no cenário jurídico atual. Tribunais têm sido chamados a avaliar situações em que algoritmos interferem diretamente na esfera de direitos individuais, especialmente em áreas como crédito, consumo, trabalho e segurança pública. Nessas disputas, o foco da análise não está na tecnologia em si, mas na ausência de mecanismos que assegurem supervisão, transparência e possibilidade de contestação.
Nos julgamentos mais recentes, tem prevalecido a exigência de que sistemas automatizados sejam acompanhados por estruturas que permitam o exame posterior da decisão. Isso inclui a explicação dos critérios utilizados, a possibilidade de revisão por pessoa física e a existência de registros que demonstrem a regularidade da operação. Quando essas garantias não estão presentes, o Judiciário tende a reconhecer falha no dever de diligência da empresa que adotou a tecnologia.
A jurisprudência também tem se mostrado sensível a situações em que a automatização compromete o contraditório ou inviabiliza a defesa do afetado. Casos envolvendo cancelamentos unilaterais de contas, negativa de acesso a serviços ou classificação de perfis de risco com base em parâmetros opacos revelam a preocupação crescente dos juízes com a assimetria de informação entre a empresa e o titular do direito afetado. Nesses cenários, o ônus da explicação recai sobre quem implementou a ferramenta.
O Judiciário não tem exigido provas técnicas exaustivas para reconhecer a responsabilidade. Basta que o processo revele um uso da tecnologia sem salvaguardas mínimas de controle e revisão. Essa tendência reforça a necessidade de as empresas estruturarem seus processos internos de governança algorítmica antes que a contestação judicial se torne inevitável. A omissão nesse ponto já não encontra mais respaldo na análise jurisprudencial dominante.
As falhas começam na ausência de critérios internos para uso de IA
Boa parte dos riscos jurídicos associados à inteligência artificial decorre da ausência de diretrizes claras dentro das próprias organizações. Muitas empresas adotam sistemas automatizados sem definir, de forma prévia, os critérios mínimos que devem orientar sua seleção, validação e monitoramento. Esse vazio estrutural compromete a capacidade de controle e dificulta qualquer tentativa posterior de defesa.
A ausência de critérios internos permite que decisões tecnológicas sejam tomadas com base apenas em fatores operacionais, sem avaliação jurídica ou supervisão institucional. Isso significa que não há documentação sobre os objetivos do sistema, os limites de sua atuação ou as hipóteses em que ele deve ser desativado. Quando ocorre uma falha, falta o histórico necessário para reconstruir o processo decisório e demonstrar a diligência da empresa.
Em muitos casos, o jurídico sequer participa da definição dos requisitos funcionais exigidos dos fornecedores de IA. A contratação é feita sem cláusulas específicas sobre responsabilidade técnica, padrões de desempenho ou protocolos de correção de erro. A governança algorítmica, quando existe, permanece restrita a aspectos informacionais ou de compliance, sem integração efetiva com os processos decisórios da organização.
Esse padrão de omissão torna o risco jurídico recorrente. Sistemas de IA operam com base em dados e regras estatísticas que precisam ser compreendidos, auditados e controlados. Quando essas etapas são ignoradas, o erro deixa de ser eventual e passa a refletir uma falha na estrutura de governança. A consequência, nos litígios, é a responsabilização da empresa não apenas pela falha, mas pela ausência de medidas internas que poderiam tê-la evitado.
Sem governança algorítmica, o risco jurídico se multiplica
O uso de inteligência artificial em atividades empresariais exige uma estrutura de controle que ainda está ausente em grande parte das organizações. Sem mecanismos institucionais para supervisionar o funcionamento dos sistemas, o risco de erro jurídico se amplia e tende a se consolidar como responsabilidade formal. A ausência de resposta organizada às falhas reforça a vulnerabilidade da empresa em eventuais disputas.
Governança algorítmica não se resume a protocolos técnicos ou relatórios de conformidade. Ela pressupõe critérios definidos para a escolha de soluções tecnológicas, métodos consistentes de validação e procedimentos internos que assegurem a revisão periódica do desempenho dos sistemas. Quando esses elementos não estão previstos, a empresa compromete sua capacidade de demonstrar diligência, mesmo que a falha tenha origem técnica.
A atuação jurídica, nesse cenário, deve se integrar à formulação das regras que orientam o uso da IA na organização. Isso inclui revisar processos de contratação, estabelecer exigências de supervisão, participar da definição de limites operacionais e acompanhar a resposta institucional a falhas.
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